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domingo, 30 de dezembro de 2018

O CARREIRO E O PAPAGAIO - De Monteiro Lobato

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             Vinha um carreiro à frente dos bois, cantarolando pela estrada sem fim. Estrada de lama. 
              Em certo ponto o carro atolou.
              O pobre homem aguilhoa os bois, dá pancadas, grita; nada consegue e põe-se a lamentar a sorte. 
              - Desgraçado que sou! Que fazer agora, sozinho neste deserto? Se ao menos São Benedito tivesse dó de mim e me ajudasse...
              Um papagaio escondido entre as folhas condoeu-se dele e, imitando a voz de santo, começou a falar: 
              Os céus te ouviram, amigo, e Benedito em pessoa aqui está para o ajutório que pedes. 
              O carreiro, num assombro, exclama: 
              - Obrigado, meu santo! Mas onde estás que não te vejo? 
              Ao teu lado. Não me vês porque sou invisível. Mas, vamos, faze o que mando.  Toma da enxada e cava aqui. Isso. Agora a mesma coisa do outro lado. Isso. Agora vais cortar uns ramos e estivar o sulco aberto. Isso. Agora vais aguilhoar os bois. 
              O carreiro fez tudo como o papagaio mandou e com grande alegria viu desatolar-se o carro. 
               Obrigado, meu santo! - exclamou ele de mão postas. Nunca me hei de esquecer do grande socorro prestado, pois que sem ele eu ficaria aqui toda a vida. 
                O papagaio achou muita graça na ingenuidade do homem e papagueou, como despedida, um velho rifão popular: 


Ajuda-te que o céu te ajudará.


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- Como são sabidinhos esse bichos das fábulas! Este papagaio, então, está um suco! 
- Suco de que, minha filha? - perguntou Dona benta. 
- De sabedoria, vovó! O meio da gente se sair duma dificuldade é sempre esse - lutar, lutar...
 - Eu sei de outro muito melhor - disse Emília. Dez vezes melhor...
A menina admirou-se. 
- Qual é, Emília? 
- É quando todos estão desesperados e tontos, sem saber o que fazer, voltaram-se para mim e: "Emília, acuda!" e eu vou e aplico o faz-de-conta e resolvo o problema. Aqui nesta casa ninguém luta para resolver as dificuldades; todos apelam para mim. 
- E você manda o Visconde. Sem o faz-de-conta e o Visconde ela não se arranja. 
- Mas o caso é que os problemas se resolvem. É ou não? 
Narizinho teve que concordar com ela. 
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Fonte: Fábulas de Monteiro Lobato - Coleção Educar. 

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Nicéas Romeo Zanchett 

OS ANIMAIS E A PESTE - De Monteiro Lobato

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               Em certo ano terrível de peste entre os animais, o leão apreensivo, consultou um mono de barbas brancas, 
               - Esta peste é um castigo do céu - respondeu o mono, e o remédio é aplacarmos a cólera divina sacrificando aos deuses um de nós. 
               - Qual? - perguntou o leão. 
               - O mais carregado de crimes. 
               O leão fechou os olhos, concentrou-se e, depois duma pausa, disse aos súditos reunidos em redor: 
               - Amigos! É fora de dúvida que quem deve sacrificar-se sou eu. Cometi grandes crimes, matei centenas de veados, devorei inúmeras ovelhas e até vários pastores. Ofereço-me pois, para o sacrifício necessário ao bem comum. 
               A raposa adiantou-se e disse: 
               - Acho conveniente ouvir a confissão das outras feras. Porque, para mim, nada do que Vossa Majestade alegou constitui crime. Matar veados - desprezíveis criaturas; devorar ovelhas - mesquinho bicho de nenhuma importância; trucidar pastores - raça vil, merecedora de extermínio! Nada disso é crime. São coisa até que muito honram o nosso virtuosíssimo leão. 
              Grandes aplausos abafaram as últimas palavras da bajuladora - e o leão foi posto de lado com impróprio para o sacrifício. 
              Apresentou-se em seguida o tigre e repete-se a cena. Acusa-se ele de mil crimes, mas a raposa prova que também o tigre era um anjo de inocência. 
               E o mesmo aconteceu com todas as outras feras. 
               Nisto chega a vez do burro. Adianta-se o pobre animal e diz: 
               - A consciência só me acusa de haver comido uma folha de couve na horta do senhor vigário. 
               Os animais entreolharam-se. Era muito sério aquilo. A raposa toma a palavra. 
               - Eis amigos, o grande criminoso!  Tão terrível o que ele nos conta, que é inútil prosseguirmos na investigação. A vítima a sacrificar-se aos deuses não pode ser outra, porque não pode haver crime maior do que furtar a sacratíssima cousa couve do senhor vigário. 
              Toda a bicharada concordou e o triste burro foi unanimemente eleito para o sacrifício. 
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Aos poderosos tudo se desculpa; aos miseráveis nada se perdoa. 


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- Viva! Viva!... Esta é a fábula do Burro Falante - e Pedrinho recordou todos os incidentes daquele dia lá no País das Fábulas. 
Essa história estava se desenvolvendo, e no instante em que as feras iam matar o pobre burro, o Peninha derrubou do alto do morro uma enorme pedra sobre as fuças do leão. 
- Salvamos o Conselheiro - disse Emília - mas o fabulista pegou um segundo burro para poder completar a fábula. Pobre segundo burro !... - e Emília suspirou. 
- Esta fábula me parece muito boa, vovó - opinou Narizinho. 
- é, minha filha. Retrata as injustiças da justiça humana. A tal injustiça humana é implacável contra os fracos e pequeninos - mas não é capaz de pôr as mãos num grande, num poderoso. 
- Falta um Peninha que dê com pedras do tamanho do Corcovado no focinho do Leão da justiça. 
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Fonte: Fábulas de Monteiro Lobato - Coleção Educar.

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Nicéas Romeo Zanchett 

sábado, 29 de dezembro de 2018

O CORVO E O PAVÃO - De Monteiro Lobato

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              O pavão, de roda aberta em forma de leque, dizia com desprezo ao corvo: 
               - Repare como sou belo! Que cauda, hein? Que cores, que maravilhosa plumagem! Sou das aves a mais formosa, a mais perfeita, não? 
               - Não há dúvida que você é um belo bicho - disse o corvo. Mas, perfeito? Alto lá! 
               - Quem quer criticar-me! Um bicho preto, capenga, desengraçado e, além disso, ave de mau agouro... Que falha você vê em mim, ó tição de penas? 
               O corvo respondeu: 
               - Noto que para abater o orgulho dos pavões a natureza lhes deu um par de patas que, faça-me o favor, envergonharia até a um pobre diabo como eu... 
               O pavão, que nunca tinha reparado nos próprios pés, abaixou-se e contemplou-os longamente. E, desapontado, foi andando o seu caminho sem replicar coisa nenhuma. 
               Tinha razão o corvo: não há beleza sem senão.


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- Que quer dizer "senão", vovó? 
- Aqui nesta frase quer dizer defeito. 
 - E porque senão é defeito? 
- Porque o modo de botar um defeito nalguém ou nalguma coisa era sempre por meio do "senão" - e por fim essa palavra ficou sinônima de defeito. "Fulana seria muito bonitinha, se não fosse aquele nariz  de coruja."  "Esse doce estaria ótimo, se não fosse estão doce demais" - e assim por diante. 
- Mas é verdade, vovó, que não há mesmo beleza sem senão? 
- A fábula diz que não há e as fábulas sabem... 
- São sabidíssimas, sim! - continuou Emília. E a dos filhos da coruja é a mais sabida de todas. Quem é que andou inventando as fábulas, Dona Benta? Foram os animais mesmos? 
Dona Benta riu-se. 
- Não, Emília. Quem inventou a fábula foi o povo e os escritores as foram aperfeiçoando.  A sabedoria que há nas fábulas é a mesma sabedoria do povo, adquirida à força de experiências. 
- Mas não haverá mesmo beleza sem senão, vovó? - insistiu a menina. 
- Há, sim, minha filha. Para mim, por exemplo, você é uma belezinha sem senão. 
Emília torceu o nariz. Depois prometeu escrever uma fábula com o título: "Os netos da coruja."

Fonte: Fábulas de Monteiro Lobato - Coleção Educar.

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Nicéas Romeo Zanchett 


O CÃO E O LOBO de Monteiro Lobato

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               Um lobo muito magro e faminto, todo pele e ossos, pôs-se um dia a filosofar sobre as tristezas da vida. E nisso estava quando lhe surge pela frente um cão - mas um cão e tanto, gordo forte, de pelo fino e lustroso. 
               Espicaçado pela fome, o lobo teve ímpeto de atirar-se sobre ele. A prudência, entretanto, cochichou-lhe ao ouvido: - "Cuidado! Quem se mete a lutar com um cão desses sai perdendo."
              O lobo aproximou-se do cão com toda a cautela e disse: 
              - Bravos! Palavra de honra que nunca vi um cão mais gordo nem mais forte. Que pernas rijas, que pelo macio! Vê-se que o amigo se trata...
               - É verdade! - respondeu o cão. Confesso que tenho tratamento de fidalgo. Mas, amigo lobo, suponho que você pode levar a mesma boa vida que levo. 
               - Como?
               - Basta que abandone esse viver errante, esses hábitos selvagens e se civilize, como eu. 
               - Explique-me lá isso por miúdo, pediu o lobo com um brilho de esperança nos olhos. 
              - É fácil. Eu apresento você ao meu senhor. Ele, está claro, simpatiza-se e dá a você o mesmo tratamento que dá a mim: bons ossos de galinha, restos de carne, um canil com palha macia. Além disso, agrados, mimos a toda hora, palmadas amigas, um nome. 
              - Aceito! - respondeu o lobo. Quem não deixará uma vida miserável como esta por uma de regalos assim? 
              - Em troca disso - continuou o cão - você guardará o terreiro, não deixando entrar ladrões nem vagabundos. Agradará ao senhor e à sua família, sacudindo a cauda e lambendo a mão de todos. 
              - Fechado! - resolveu o lobo - e emparelhando-se com o cachorro partiu a caminho da casa. Logo, porém, notou que o cachorro estava de coleira. 
              - Que diabo é isso que você tem no pescoço? 
              - É a coleira.
              - E para que serve? 
              - Para me prenderam à corrente. 
              - Então não e livre, não vai para onde quer, como eu? 
              - Nem sempre. Passo às vezes vários dias preso, conforme a veneta do meu senhor. Mas que tem isso, se a comida é boa e vem à hora certa? 
              O lobo entreparou, refletiu e disse: 
               - Sabe do que mais? Até logo! Prefiro viver magro e faminto, porem livre e dono do meu focinho, a viver gordo e liso como você, mas de coleira ao pescoço. Fique-se lá com a sua gordura de escravo que eu me contento com a minha magreza de lobo livre. 
                E afundou no mato. 


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- Fez muito bem! - berrou Emília. Isso de coleira o diabo queira...
Narizinho bateu palmas. 
- E não é que ela fez um versinho, vovó ?
"Isso de coleira, o diabo queira..." Bonito, hein?...

- Bonito e certo - continuou Emília. Eu sou como esse lobo. Ninguém me segura. Ninguém me bota coleira. Ninguém, me governa. Ninguém me... 
- Chega de "mes", Emília. Vovó está com cara de querer falar sobre a liberdade. 
- Talvez não seja preciso, minha filha. Vocês sabem tão bem o que é liberdade que nunca me lembro de falar disso.
- Nada mais certo, vovó! - gritou Pedrinho. Este seu sítio é o suco da liberdade; e se eu fosse refazer a natureza, igualava o mundo a isto aqui. Vida boa, vida certa, só no Pica-pau Amarelo. 
- Pois o segredo, meu filho, é um só: liberdade. Aqui não há coleiras. A grande desgraça do mundo é a coleira. E como há coleiras espalhados pelo mundo!
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Fonte: Fábulas de Monteiro Lobato - Coleção Educar. 

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Nicéas Romeo Zanchett 

QUALIDADE E QUANTIDADE - De Monteiro Lobato

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            Meteu-se um ono a falar numa roda de sábios e tais asneiras disse que foi corrido a pontapés.
            - Que? - exclamou ele. Enxotam-me daqui? Negam-me talento? Pois hei de provar que sou um grande figurão e vocês não passam duns idiotas. 
            Enterrou o chapéu na cabeça e dirigiu-se à praça pública onde se apinhava copiosa multidão de beócios. Lá trepou em cima duma pipa e pôs-se a declamar.  Disse asneiras como nunca, tolices de duas arrobas, besteiras de dar com um pau. Mas como gesticulava e berrava furiosamente, o povo em delírio o aplaudiu com palmas e vivas - e acabou carregando-o em triunfo. 
             - Viram? - resmungou ele ao passar ao pé dos sábios. Reconheceram a minha força? Responderam-me agora: que vale a opinião de vocês  diante desta vitória popular? 
             Um dos sábios retrucou serenamente: 
A opinião da qualidade despreza a opinião da quantidade. 



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- Nada mais certo, meus filhos - disse Dona Benta. Logo que os homens se reúnem em multidão, o nível mental baixa muito.  Quanto maior a multidão, mais baixo o nível mental. Por isso é que os sábios têm tanto medo às multidões. 
- Senhora já nos contou aquele caso lá da Grécia - Lembra-se? 
- Sim, o caso do orador que estava fazendo um discurso para o povo. De repente rebentaram tremendos aplausos. O orador voltou-se para um amigo ao lado: "Será que eu disse alguma asneira?"

Fonte: Fábulas de Monteiro Lobato - Coleção educar. 

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Nicéas Romeo Zanchett 

O SABIÁ NA GAIOLA - De Monteiro Lobato

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              Lamentava-se na gaiola um velho sabiá. 
              - Que triste destino o meu, nesta prisão toda a vida... E que saudades dos bons tempos de outrora, quando minha vida era um contínuo pular de galho em galho em procura de laranjas mais belas... Madrugador, quem primeiro saudava a luz da manhã era eu, como era eu o último a despedir-me do sol à tardinha. Cantava e era feliz...
              Um dia, traiçoeiro visgo me ligou os pés. Esvoacei, debati-me em vão e vim acabar nesta gaiola horrível, onde saudoso choro o tempo da liberdade. Que triste destino o meu! Haverá no mundo maior desgraça? 
              Nisto abre-se a porta da sala e entra o caçador, de espingarda ao ombro e uma fieira de pássaros na mão. 
              Ante o espetáculo das míseras avezinhas estraçalhadas a tiro, gotejantes de sangue, algumas ainda em agonia, o sabiá estremeceu. 
               E horripilado verificou não ser dos mais infelizes, pois que vivia e ainda não perdera a esperança de recobrar  a liberdade de outrora. 
               Refletiu sobre o caso e murmurou consigo: 
               - Antes penar que morrer... 

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- Será verdade isso, vovó? Será certo esse "antes penar que morrer?"
- Deénde da ideia que a gente faz da morte, minha filha. Quem a considera um Mr. Ceifas, ah, esse prefere a amável visita de Mr. Ceifas ao tal penar. 
 - E que é penar? 
- É sofrer dor prolongada, é sofrer um castigo, uma pena. 
- Mas como é que a pena é ao mesmo tempo dor e aquilo das aves? Isso atrapalha a gene. Emília, quando ainda era uma coitadinha que estava decorando as palavras, uma vez confundiu as duas penas - a pena dor e a pena, e veio da cozinha dizendo: "Tia Nastácia  está contando para o visconde que para pena de costas o melhor remédio é passar iodo com uma dor de galinha." Ela havia trocado as bolas... 
- São coisas do latim, minha filha. Nessa língua duas palavras parecidas: poena e penna. A primeiro virou, em nossa língua, "pena" - e a segunda ficou penna mesmo - a tal das aves. 
- E depois a penna das aves perdeu uma peninha e virou pena com um n só, igual à pena-dor - concluiu Emília, e agora está aí, está aí... 
Esta aí o que, Emília?
- Está aí um grande embrulho...
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Fonte: Fábulas de Monteiro Lobato - Coleção Educar.

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Nicéas Romeo Zanchett 

O LEÃO O LOBO E A RAPOSA de Monteiro Lobato

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                O leão muito velho e já caduco andava morre não morre. 
                 Mas, apegado à vida e sempre esperando, deu ordem aos animais para que o visitassem e lhe ensinassem remédios. 
                 Assim aconteceu. A bicharada inteira desfilou diante dele, cada qual com um remédio ou um conselho. 
                 Mas a raposa? Por que não vinha? 
                 - Eu sei - disse um lobo intrigante, inimigo pessoal da raposa. Ela é uma finória, acha que Vossa Majestade morre logo e é bobagem andar a perder tempo com cacos de vida. 
                 Enfureceu-se o leão e mandou buscar a raposa debaixo de vara.
                 - Então é assim que me trata, ó vilíssimo animal? Esquece que eu sou o rei da floresta? 
                 - Perdão, Majestade! Se não vim até agora é que andava em peregrinação pelos oráculos, consultando-os a respeito da doença que abate o ânimo do meu querido rei. E não perdi a viagem, visto como trago a única receita capaz de produzir melhoras na real saúde de Vossa Majestade. 
                 - Diga lá o que é - ordenou o leão, já calmo. 
                 - É combater a frialdade que entorpece os vossos membros com um "capote de lobo."
                 - Que é isso? 
                 - Capote de lobo é uma pele ainda quente de lobo escorchado na horinha. E como está aqui mestre lobo, súdito fiel de Vossa Majestade, vai ele sentir um prazer imenso em emprestar a pele ao seu real senhor. 
                 O leão gostou da receito, escorchou o lobo, embrulhou-se na pele fumegante e ainda por cima lhe comeu a carne.
                 A raposa, vingada, retirou-se, murmurando: 
                 - Toma! Para intrigante, intrigante e meio. 

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- Bem feito! - exclamou Emília. Essa raposa merece um doce. E com certeza o tal lobo era aquele que comeu a avó de Capinha Vermelha. 
- Boba! Aquele foi morto a machadadas pelo lenhador - disse Narizinho. 
- Eu sei - tornou Emília - mas nas histórias a matança nunca é completa. Nunca o morto fica bem matado - e volta a si outra vez. Você bem viu no caso do Capitão Gancho. Quantas vezes Peter Pan deu cabo dele? E o Capitão Gancho continua cada vez mais gordo e ganchudo. 
- Por que é, vovó, que em todas as histórias a raposa sai sempre ganhando? - quis saber Pedrino.
- Porque a raposa é realente astuta. Sabe defender-se, sabe enganar os inimigos. Por isso, quando um homem quer dizer que o outro é muito hábil em manhas, diz: "Fulano de Tal é uma verdadeira raposa!" Aqui nesta fábula você viu com que arte ela virou contra o lobo o perigo que a ameaçava. Ninguém pode com os astutos. 
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Fonte: Fábulas de Monteiro Lobato - Coleção Educar.
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Nicéas Romeo Zanchett 

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

O PERU MEDROSO - de Monteiro Lobato

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               Gordo peru e lindo galo costumavam empoleirar-se na mesma árvore. A raposa os avistou certo dia e veio vindo contente, a lamber os beiços com quem diz: "Temos petisco hoje!"
                Chegou. Ao avistá-lo o peru leva tamanho susto que por um triz não cai da árvore. Já o galo o que fez foi rir-se; e como sabia que trepar a árvore a raposa não trepava. fechou os olhos e adormeceu. 
                O peru, coitado, medroso como era, tremia como varas e não tirava do inimigo os olhos. 
                 - O galo não apanho, mas este peru cai-me no papo já... - Pensou consigo a raposa.      
                 E começou a fazer caretas medonhas, a dar pinotes, a roncar, a trincar os dentes, dando a impressão duma raposa louca. Pobre peru! Cada vez mais apavorado, não perdia de vista um só daqueles movimentos. Por fim tonteou, caiu do galho e veio ter aos dentes da raposa faminta. 
                - Estúpido animal! - exclamou o galo acordado. Morreu por excesso de cautelas. tanta atenção prestou aos arreganhos da raposa, tanto aos perigos, que lá se foi, catrapus...

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A prudência manda não atentar demais nos perigos. 



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- Eu conheci um homem assim - disse Dona Benta. Tomava um milhão de precauções para evitar males. Só bebia água filtrada. Andava pelo meio da rua para evitar que lhe caíssem sobre a cabeça os vasos de flor das janelas. Desinfetava as mãos sempre que dizia adeus a alguém... 
- E que fim levou esse homem, vovó? 
- Morreu de um desastre de avião.
- Mas se ele tinha tanto medo de tudo, como teve coragem de voar? 
- Ele não estava voando, meu filho. O avião caiu em cima dele, na rua. 

Fonte: Fábulas de Monteiro Lobato - Coleção Educar. 

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Nicéas Romeo Zanchett 

A RAPOSA SEM RABO - De Monteiro Lobato

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              Certa raposa caiu numa armadilha. Debateu-se, gemeu, chorou e finalmente conseguiu fugir, embora deixando na ratoeira sua linda cauda. Pobre raposa! Andava agora trise, sorumbática, sem coragem de aparecer diante das outras, com receio da vaia. 
               Mas de tanto pensar no seu caso teve a ideia de convocar o povo raposeiro para uma grande reunião. 
               - Assunto gravíssimo! - explicou ela. Assunto que interessa a todos os animais. 
               Reuniram-se as raposas e a derrabada, tomando a palavra, disse: 
               - Amigas, respondam-me por obséquio: que serventia tem para nós a cauda? Bonita não é, útil não é, honrosa não é... Por que, então, continuarmos a trazer este grotesco apêndice às costas? Fora com ele! Derrabemo-nos todas e fiquemos graciosas como as preás. 
               As ouvintes estranharam aquelas ideias e, matreiras como são, suspeitaram qualquer coisa. Ergueram-se do seu lugar e, dirigindo-se à oradora, pediram: 
               - Muito bem. Mas cortaremos primeiro a sua. Vire-se para cá, faça o favor... 
               A pobre raposa, desapontada, teve de obedecer à intimação. Voltou de costas. 
               Foi uma gargalhada geral. 
               - Está explicado o empenho dela em nos fazer mais bonitas. Fora! Fora com a derrabada!...
               E correram-na dali. 

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- Isso é bem certo - disse Dona Benta. Se uma pessoa que tem um defeito conseguisse que o mundo inteiro também tivesse o mesmo defeito, que acontecia, Pedrinho? 
- Acontecia que quem não tivesse o tal defeito é que era o defeituoso. 
- Exatamente. Há certos lugares aí pelo sertão em que todos os moradores ficam com uns enormes papos. Um dia um viajante encontrou na casa duma família de papudos e viu na parede o retrato de um moço sem papo. "Quem é ele?" - perguntou. É a dona da casa respondeu: "Ah esse é meu filho Totonho, no tempo em que era defeituoso". "E agora não é mais?" -  perguntou o viajante. "Felizmente sarou". - respondeu a papuda. "Está já com o pescoço bem cheio, como o meu" - e alisou com a mão aquela papeira lustrosa...

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Fonte: Fábulas de Monteiro Lobato - Coleção educar. 

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Nicéas Romeo Zanchett 

O BURRO NA PELE DO LEÃO - de Monteiro Lobato

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                Certo burro de ideias, cansado de ser burro, deliberou fazer-se leão. 
                - Mas como, estúpida criatura? 
                - Muito bem. Há ali uma pele de leão. Visto-a e pronto! Viro leão! 
                Assim fez. Vestiu-se e pô-se a caminhar pela floresta. Majestosamente, convencido de que era o rei dos animais. 
                Não demorou muito e apareceu o dono. 
                - Vou pregar-lhe o maior susto da vida, pensou lá consigo o animalejo - e lanando-se à frente do homem desferiu um formidável urro. Em vez de urro, porém, saiu o que podia sair de um burro: um zurro. 
                O homem desconfiou. 
                - Leão que Zurra!... Que história e esta? 
                Firmou a vista e logo notou que o tal leão tinha orelhas de asno. 
                - Leão que zurra e tem orelhas de asno há de ser na certa um raio do Cuitelo  que me fugiu ontem do pasto. Grandessíssimo velhaco! Espera aí... 
                E agarrou-o. Tirou-lhe a pele de leão, e dobrou-a, fez dela um pelego, e montando no pobre bicho, tocou-o para casa no trote. 
                - Toma, leão duma figa! Toma... e pregava-lhe valentes lambadas. 
  

Quem vestir-se de leão, nem zurre nem deixe as orelhas de fora. 


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- Bravos! gritou Pedrinho batendo palmas. Está aí uma fábula que acho muito pitoresca. Gostei. 
Pois eu não gostei - berrou Emília - porque trata com desprezo um animal tão inteligente e bom como o burro. Por que é que esse fabulista fala em "estúpida criatura?" E por que chama o pobre burro de "animalejo?" Animalejo é a avó dele... 
- Emília! - respondeu Dona Benta. Mais respeito com a avó dos outros. 
- É que não suporto essa mania de insultar um ente tão sensato e precioso como é o burro. Quando um homem quer xingar outro, diz: "Burro! Você é um burro!" e no entanto há outros burros que são verdadeiros Sócrates de filosofia, como o Conselheiro. Quando um homem quizer xingar outro, o que deve dizer é uma coisa só: "Você é um homem, sabe? Um grandessíssimo homem!" Mas chamar de burro é, para mim, o maior dos elogios. É o mesmo que dizer: "Você é um Sócrates! Você é um grandessíssimo Sócrates..."

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Fonte: Fábulas de Monteiro Lobato - Coleção Educar
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Nicéas Romeo Zanchett 

AS AVES DE RAPINA E OS POMBOS

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               A guerra dos rapinantes - quando isto foi? Há séculos. Há mil anos. Mas foi guerra tão terrível que até hoje se fala nela. 
               Brigaram as aves de rapina - águias, abutres, gaviões, milhafres, por causa de um veadinho novo. E separaram-se em campos contrários, rompidos em guerra franca. Durante meses o azul do céu virou arena de luta. Ora duelos singulares; ora ataques de bandido contra outro; ora um grupo que agredia um inimigo escoteiro. 
               E adeus, paz do azul! Volta e meia era um corpo que caia, espedaçado a unhaços; ou penas que desciam em aspirais, ou gotas de sangue a pingar. 
               As aves pacíficas da terra, assustadas com aqueles horrores, deliberaram intervir. E escolheram como mensageiro a pomba. 
               - Vá você que é a sinaleira da paz, e reduza à razão aqueles loucos furiosos. 
               A pombinha foi conferenciar com os chefes, e com tanta eloquência falou que eles a ouviram e assinaram um tratado, comprometendo-se a nunca mais se devorarem uns aos outros. 
               Mas o que depois disso sucedeu degenerou em calamidade para os apaziguadores. Harmonizados entre si, os rapinantes pouparam-se uns ao outros, mas deram de empregar toda a força dos bicos e todo o fio das unhas contra as pobres pombas. E foi uma chacina sem tréguas que dura até hoje e durará eternamente. 
               E as pombinhas entraram a murmurar, num queixume triste: 
               - Que tolice a nossa, de restabelecera harmonia entre os rapinantes! A boa política mandava fazer justamente o contrário - dividi-los ainda mais... 


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- Houve mesmo essa guerra, Dona Benta? - perguntou tia Nastácia, que vinha entrando com um prato de pés-de-moleque ainda quentinhos. Judiação, as malvadas matarem as pombinhas... 
Emília pôs as mãos na cintura. 
- Que graça, esta assassina achar judiação, águia matar pombas! Quem é que ontem torceu o pescoço do frango carijó? Quem é que a semana passada matou aquele leitãozinho? Quem é que... 
- Pare Emília! - disse Dona Benta. Você está se afastando muito da fábula. Quero saber qual a moralidade do caso das aves de rapina e as pombas. 
- Pedrinho gritou: 
- Eu sei, vovó! Dividir é enfraquecer - não é isso mesmo?
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Fonte : Fábulas de Monteiro Lobato - Coleção Educar. 
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Nicéas Romeo Zanchett 

domingo, 23 de dezembro de 2018

O ÚTIL E O BELO - de Monteiro Lobato

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               Parou o veado à beira do rio, mirando-se no espelho das águas. E refletiu: 
               - Bem mal feito de corpo que sou! A cabeça é linda, com estes formosos chifres que todos os animais invejam. Mas as pernas.. Muti finas, muito compridas. A natureza foi injusta comigo. Antes me desse menos pernas e mais galharada na cabeça. Que lindo diadema seria! Com que orgulho eu passaria pelos bosques ostentando um enfeite único em toda animalidade!...
               Neste ponto interrompeu o latido dos veadeiros, valentes cães de caça que lhe vinham na pista, como relâmpagos.  
               O veado dispara, foge à toda e embrenha-se na floresta. E enquanto corria pôde verificar quão sábia fora a natureza dando-lhe mais pernas do que chifres, porque estes, com toda a sua formosura, só serviam para enroscar-se nos cipós e atrapalhar-lhe a fuga; e aquelas, apesar de toda a feiura, constituíam a sua única segurança. E mudou de ideia, convencido de que antes mil vezes pernas finas, mas velocíssimas, do que formosa, mas inútil galhaça. 
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- Se os chifres do veado só serviam para enfeite, então a fábula está certa - disse Emília. Mas quando um chifre é como o do Quindim, ah, então vale ainda mais do que pernas. Quindim nem sabe correr, porque não precisa fugir. Em vez de fugir na volada, como as lebres e os veadinhos, ele faz muuuu!... e espeta o inimigo. 
- E que é, Emília, que você acha melhor - perguntou Narizinho - o útil ou o belo? 
- Acho melhor os dois encangados, assim como uma espécie de banana inconha. Útil e belo ao mesmo tempo. Por que é que uma coisa útil deve ser feia? Não há razão. 
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Fonte: Fábulas de Monteiro Lobato - Coleção educar. 
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Nicéas Romeo Zanchett

A MORTE DO LENHADOR - de Monteiro Lobato

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            Um velhinho, muito velho, vivia de tirar lenha na mata. Os feixes, porém, cada vez lhe pareciam mais pesados. Tropicava com eles, quase caía, e um dia, caiu de verdade, perdeu a paciência e lamentou-se amargamente: 
            - Antes de morrer! De que vale a vida, se nem com este miserável feixe posso? Vem, ó Morte, vem aliviar-me do peso desta vida inútil. 
            Tentou erguer a lenha. Não pôde e, desanimado, invocou pela segunda veza Magra. 
             - Por que demoras tanto, Morte?  Vem, já pedi, vem aliviar-me do fardo da vida. Andas pelo mundo a colher crianças e esquecer de mim que te chamo... 
             A Morte foi e apareceu - horrenda, escaveirada, com os ossos a chocalharem e a foice na mão. 
              Ao vê-la de perto o homem estremeceu de pavor, e mais ainda quando a magra lhe disse, batendo os ossos do queixo: 
              - Cha-mas-te-me; a-qui es-tou!
              O velho tremia, suava... E para sair-se dos apuros só teve esta: 
               - Chamei-te, sim, mas para me ajudares a botar esta lenha às costas... 


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- Não gosto desta fábula -disse a menina - porque aparece uma Morte muito feia. Eu não queria que pintassem a morte assim, com o alfange de cortar grama ao ombro, com a caveira em vez de cara e aquele lençol embrulhando o esqueleto... 
- Você tem razão, minha filha. Essa imagem da morte é coisa da Idade Média, o tempo mais trágico e triste da história. A Morte não é nada disso. É, um bem. É um remédio É o Grande Remédio. Quando um doente está sofrendo na maior agonia, a Morte vem como o fim da dor. 
- Morte que eu gosto - disse Pedrinho - é aquela dos americanos... 
Ninguém entendeu. Ele explicou. 
- Lembram-se daquela fita que vimos no cinema, HORAS ROUBADAS? A Morte era Mister Ceifas, um moço muito elegante e delicado, mas de rosto impassível. Entrou naquele jardim e com um gesto muito amável convidou o velho entrevado a ir com ele. O velho não quis. Mister Ceifas não se aborreceu. Ficou por ali. De repente, o velho quis morrer e então Mister Ceifas aproximou-se, sempre com aquela gentileza, e estendeu-lhe a mão. E o velho ergueu-se da cadeira de rodas, leve como se fosse um moço, e lá se foi pela mão do Mister Ceifas... Que beleza! Eu gostei tanto que perdi o medo da morte. Se ele é assim, que venha buscar-me. Sairei pela mão do Mister Ceifas tal qual aquele velho - feliz, sorrindo e gozando a beleza das paisagens do outro mundo... 
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Fonte: Fábulas de Monteiro Lobato - Coleção Educar.
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 Nicéas Romeo Zanchett 

O SABIÁ E O URUBU - de Monteiro Lobato

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              Era uma tardinha. Morria o sol no horizonte enquanto as sombras se alongavam na terra. Um sabiá cantava tão lindo que até as laranjeiras pareciam absortas à escuta.
               Estorce-se de inveja o urubu e queixava´se: 
               - Mal abre o bico este passarinho e o mundo se enleva. Eu, entretanto, sou um espantalho de que todos fogem com repugnância... Se ele chega, tudo se alegra; se eu me aproximo, todos recuam... Ele, dizem, traz felicidade; eu, maus agouro... A natureza foi injusta e cruel para comigo. Mas está em mim corrigir a natureza; mato-o, e desse modo me livro da raiva que seus gorjeios me provocam. 
               Pensando assim, aproximou-se do sabiá ao vê-lo armou as asas para a fuga. 
               - Não tenha medo amigo! venho para mais perto a fim de melhor gozar as delícias do canto. Julga que por ser urubu não dou valor à obras-primas da arte? Vamos lá cante! Cante ao pé de mim aquela melodia com que há pouco você extasiava a natureza. 
               O ingênuo sabiá deu crédito àqueles mentirosos grasnos e permitiu que dele se aproximasse o traiçoeiro urubu. Mas este, logo que o pilhou ao alcance, deu-lhe tamanha bicada que o fez cair moribundo. 
               Arquejante, omo olhos já envidrados, geme o passarinho: 
               - Que mal eu fiz para merecer tanta ferocidade?
               - Que malfez? É boa! Cantou!... Cantou divinamente bem, como nunca urubu nenhum há de cantar. Ter talento: eis o grande crime!... 

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  A inveja não admite o mérito.


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Dona Benta suspirou e disse: 
- Está aqui outra fábula muito dolorosa, meus filhos. Põe em foco a inveja - o sentimento pior que existe. A maior parte das desgraças do mundo vem da inveja, e creio que não há sentimento mais generalizado. A inveja não admite o mérito - e difama, calunia, procura destruir a criatura invejada. Felizmente é coisa que não vejo aqui por casa. 
-Engano seu, Dona Benta! - berrou Emília. às vezes bem que me invejam... 
- Quem inveja você, bobinha? 
- Gentes... respondeu Emília fazendo um muxoxo d indireta...
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Fonte: Fábulas de Monteiro Lobato - Coleção Educar. 


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Nicéas Romeo Zanchett 

O VEADO E A MOITA - de Monteiro Lobato

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              - Perseguido pelos caçadores, um pobre veado escondeu-se bem quietinho dentro de cerrada moita. O abrigo era seguro, e tanto que por ele passaram os cães sem perceberem coisa nenhuma. 
              Salvou-se o veado; mas, ingrato e imprudente, logo que ouviu latir ao longe o perigo, esqueceu-se o benefício e pastou a benfeitora - comeu toda a folhagem que tão bem o escondera. 
              Fez e pagou. 
              Dias depois voltaram novamente os caçadores. O veado correu em procura da moita - mas a pobre moite, sem folhas, reduzida a varas, não pode mais escondê-lo, e o triste animalzinho acabou estraçalhado pelos dentes dos cães impiedosos. 



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- Bravos, vovó! - aplaudiu Narizinho. A senhora botou nesta fábula duas belezas bem lindinhas. 
 - Quais, minha filha? 
- Aquele "ouviu latir de longe o perigo" em vez de "ouvir latir ao longe os cães"; e aquele "pastou a benfeitora" em vez de "pastou a moita". Se ti Nastácia estivesse aqui, dava à senhora uma cocada. 
Dona benta riu-se. 
- Pois essas "belezinhas" são uma figura de retórica que os gramáticos xingam de sinédoque... 
- Eu sei o que é isso - berrou Emília. É "sem" com um pedaço de bodoque. 
Ninguém entendeu. Emília explicou: 
- Sine quer dizer "sem:" Quando o Visconde quer dizer "sem dia marcado", ele diz sine die. É um latim. E "doque" é um pedaço de bodoque...
- Parece que é assim, mas não é, Emília - explicou Dona benta. Sinédoque é synedoche dos gregos, e quer dizer compreensão. 
- E que tem a compreensão com as duas belezinhas? - quis saber a menina.
Tem que falando em "perigo" em vez de cães, e em "benfeitora" em vez de moita, toda a gente compreende a troca das palavras - fica a tal belezinha que você achou. A sinédoque troca a parte pelo todo, como quando dizemos "velas" em vez de "navios"; ou troca o gênero pela espécie, como quando dizemos "os mortais" em vez de "os homens"; ou troca uma coisa pela quantidade de coisa. como quando dizemos "perigo" em vez de "cães" e "benfeitoria" em vez de "moita". 
- E para que serve isso? - perguntou Narizinho. 
Para enfeitar o estilo. 
- Mas a senhora mesmo não disse que o estilo muito enfeitado, muito floreado é feio? 
- Sim. Quando é muito enfeitado fica feio e de mau gosto, mas se aparece discretamente enfeitado fica bem bonitinho. Se você vai à vila com uma flor no peito, fica linda como uma sinédoque. Mas se enfeitar demais, fica apalhaçada e revela mau gosto. Tudo na vida depende da justa medida; nem mais nem menos; antes menos do que mais. 
- Então é usar e não abusar - lembrou a menina. 
- Isso mesmo. Discrição é isso. 
Narizinho, que era uma menina muito distraída, compreendeu perfeitamente. 
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Fonte : Fábulas de Monteiro Lobato - Coleção Educar. 
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Nicéas Romeo Zanchett 

A RÃ SÁBIA - de Monteiro Lobato

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             Como a onça estivesse para casar-se, os animais todos andavam aos pulos, radiantes, com olho na festa prometida. Só uma velha rã sabidona torcia o nariz àquilo. 
              O marreco observou-lhe o trejeito e disse: 
              - Grande enjoada! Que cara feia é essa, quando todos nós pinoteamos alegres no antegozo do festão? 
              - Por motivo muito simples - respondeu a rã. Porque nós, como vivemos quietas, a filosofar, sabemos muito da vida e enxergamos mais longe do que vocês. Responda-me a isto: se o sol se casasse em vez de torrar o mundo sozinho o fizesse ajudado por dona Sol e por mais vários sóis filhotes? Que aconteceria? 
              - Secavam-se todas as águas, está claro. 
              - Isto mesmo. Secavam-se as águas e nós, rãs e peixes, levaríamos a breca. Pois calamidade semelhante vai cair sobre vocês. Casa-se a onça,  e já de começo será ela e mais o marido a perseguirem os animais. Depois aparecem as oncinhas - e os animais terão que aguentar com a fome de toda a família. Ora, se um só apetite já nos faz tanto mal, que será quando forem três, quatro e cinco? 
            O marreco refletiu e concordou: 
            - É isso mesmo... 
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Pior que um inimigo, dois; pior que dois, três... 



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Esta fábula nos mostra - disse Dona Benta, que quem só enxerga um palmo adiante do nariz está desgraçado. As criaturas verdadeiramente sábias olham longe. Antes de fazer uma coisa, refletem em todas as consequências futuras de seu ato. 
- Eu enxergo cem metros adiante do meu nariz! - gabou-se Emília. 
Narizinho fez um muxoxo. 
 - Gabola! Vovó já disse que louvor em boca própria é vitupério. 
- Mas é verdade! - insistiu Emília. Naquele caso da compra das fazendas para aumentar o Sítio do Pica-Pau Amarelo, quem viu mais longe? Dona Benta, disse pedrinho ou eu? Eu...
- Perfeitamente, não nego - disse a menina.  Mas o feio é andar se gabando. Espere que os outros te gabem. Posso dizer assim, vovó - "espere que os outros te gabem?" 
Dona Benta riu-se. 
Pode, minha filha, porque não há nenhuma gramática por perto...

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Fonte: Fábulas de Monteiro Lobato - Coleção Educar. 


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Nicéas Romeo Zanchett 

A MENINA DO LEITE - de Monteiro Lobato

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              Laurinda, no seu vestido novo de pintas vermelhas, chinelos de bezerro, treque, treque, treque, lá ia para o mercado com uma lata de leite á cabeça - o primeiro leite da sua vaquinha mocha. Ia contente da vida, rindo-se e falando sozinha. 
              - Vendo o leito - dizia - e compro uma dúzia de ovos. Choco os ovos e antes de um mês já tenho uma dúzia de pintos. Morrem... dois, que sejam, e crescem dez - cinco frangas e cinco frangos. Vendo os frangos e crio as frangas, que crescem viram ótimas botadeiras de duzentos ovos por ano cada uma. Cinco mil ovos! choco tudo e lá me vem quinhentos galos e mais outro tanto de galinhas. Vendo os galos. A dois cruzeiros cada um - duas vezes cinco, dez... Mil cruzeiros!... Posso então comprar doze porcas de cria e mais uma cabrita. As porcas dão-me, cada uma, seis leitões. Seis vezes doze...
                Estava a menina neste ponto quando tropeçou, perdeu o equilíbrio e, com lata e tudo, caiu um grande tombo no chão.
                Pobre Laurinha! 
                Ergueu-se chorosa, com um ardor de esfoladura no joelho, e enquanto espanejava as roupas sujas de pó viu sumir-se , embebido pela terra seca, o primeiro leite da sua vaquinha mocha e com ele os doze ovos, as cinco botadeiras, os quinhentos galos, as doze porcas de cria, a cabritinha - todos os belos sonhos de sua ardente imaginação.


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Emília bateu palmas. 
- Viva! viva a Laurinha!... No nosso passeio ao país das fábulas tivemos ocasião de ver essa história formar-se - mas o fim foi diferente. Laurinha estava esperta e não derramou o pote de leite, porque não carregava o leite em pote nenhum e sim numa lata de metal bem fechada. Lembra-se Narizinho?... 
A menina lembrava-se.
- Sim - disse ela. Lembro-me muito bem. A Laurinha não derramou o leite e deixou a fábula errada. O certo é como vovó acaba de contar. 
- Está claro, minha filha - concordou Dona Benta. É preciso que Laurinha derrame  o leite para que possamos extrair uma moralidade da história. 
- Que moralidade, vovó?
- É a lição moral da história. Nesta fábula da menina do leite a moralidade é que não devemos contar uma coisa antes de a termos conseguido... 


Fonte: Fábulas de Monteiro Lobato - Coleção Educar.

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Nicéas Romeo Zanchett 

OS DOIS VIAJANTES NA MACACOLÂNDIA. De Monteiro Lobato

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              Dois viajantes, transviados no sertão, depois de muito andar alcançaram o reino dos macacos. Ai deles! Guardas surgem na fronteira, guardas ferozes que os prendem, que os amarram e os levam à presença de S. Majestade Simão III.
              El-rei examina-os detidamente, com macacal curiosidade, e em seguida os interroga: 
              - Que tal acham isto por aqui?
              Um viajante, diplomata de profissão, responde sem vacilar: 
              - Acho que este reino é a oitava maravilha do mundo. Sou viajadíssimo, já andei por Seca e Meca, mas, palavra de honra! nunca vi gente mais formosa, corte mais brilhante, nem rei de mais nobre porte do que Vossa majestade, 
               Simão lambeu-se todo de contentamento e disse para os guardas: 
               - Soltem-no e deem-lhe um palácio para morar e a mais gentil donzela para esposa. E levem incontinenti o decreto de sua nomeação para cavaleiro da mui augusta Ordem da banana de Ouro. 
               Assim se fez e, enquanto fazia, El-rei Simão, risonho ainda, dirigiu a palavra ao segundo viajante: 
              - E você? que acha do meu reino? 
              Este segundo viajante era um homem neurastênico, azedo, amigo da verdade a todo o transe. Tão amigo da verdade que replicou sem demora: 
              O que acho? É boa! Acho o que é!...
              - E o que é? - interpelou simão, fechado o sobrecenho. 
              - Não é nada. Uma macacalha.. Macaco praqui, macaco prali, macaco no trono, macaco no pau...
              - Pau nele - berra furioso o rei, gesticulando como um possesso. Pau de rachar nesse miserável caluniador... 
              E o viajante neurastênico, arrastado dali por cem munhecas, entrou numa roda de lenha que o deixou moído por uma semana. 


Quem for amigo de verdade, use couraça ao lombo. 


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- Também concordo - disse Pedrinho. A verdade a gente deve dizer com muitas cautelas e só nas ocasiões próprias. Aquela sova que o Quim da botica tomou outro dia, por que foi? Porque o bobo disse na cara do Coronel Teodoro o que toda gente pensa dele pelas costas. O bobo do Quim disse o que pensava e levou um "pé-de-ouvido" que o deixou surdo por três dias. É o que ainda acaba acontecendo para Emília. Vai dizendo as verdades mais duras na cara de toda a gente e um dia estrepa-se. Lembra-se, vovó, do que ela disse para D. Quixote, naquela vez em que o herói montou no Conselheiro por engano e ao perceber isso pôr-se a insultar o nosso burro? E se D. Quixote a espetasse com a lança? 
- Emília sabe o que faz - observou Dona Benta. A esperteza chegou ali e parou. Ela sabia muito bem que o cavalheiro da Mancha era incapaz de ofender uma "dama" e por isso abusou... 
Emília rebolou-se toda ao ouvir-se classificada de dama... 
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Nicéas Romeo Zanchett.    

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

O GALO QUE LOGROU A RAPOSA - de Monteiro Lobato

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               Um velho galo matreiro, percebendo a aproximação da raposa, empoleirou-se numa árvore. A raposa, desapontada, murmurou consigo: "Deixe estar, seu malandro, que te curo!..." E em voz alta: 
               - Amigo, venho cantar uma grande novidade: acabo-se a guerra entre os animais. Lobo e cordeiro, gavião e pinto, onça e veado, raposa e galinhas, todos os bichos andam agora aos beijos como namorados. Desça desse poleiro e venha receber o meu abraço de paz e amor. 
               - Muito bem! - exclamou o galo. Não imagina como tal notícia me alegra!  Que beleza vai ficar o mundo, limpo de guerras, crueldades e traições! Vou já descer para abraçar a amiga raposa, mas...como lá vem vindo três cachorros, acho bom esperá-los, para que também eles tomem parte na confraternização. 
               Ao ouvir falar em cachorro, Dona Raposa não quis saber de histórias, e tratou de pôr-se ao fresco, dizendo: 
               - Infelizmente, amigo Có-ri-có-có, tenho pressa e não posso esperar pelos amigos cães. Fica para outra vez a festa, sim? Até logo. 
              E raspou-se.
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Contra esperteza, esperteza e meia.



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 - Pilhei a senhora num erro! - gritou Narizinho. A senhora disse: "deixe estar que já te curo!" Começou com você e acabou com o Tu, coisa que os gramáticos não admitem. O "te"é do "Tu" não é de "Você"...
- E como queria que eu dissesse, minha filha? 
- Para estar bem com a gramática, a senhora devia dizer: "Deixa estar que eu já te curo". 
- Muito bem. Gramaticalmente é assim, mas na prática não é. Quando falamos naturalmente, o que nos sai da boca é ora o você, ora o tu - e as frases ficam muito mais jeitozinhas quando há essa combinação do você e do tu. Não acha? 
- Acho, sim, vovó, e é como falo. Mas a gramática... 
- A gramática, minha filha, é uma criada da língua e não uma dona. O dono da língua somos nós, o povo - e a gramática o que tem a fazer é, humildemente, ir registrando o nosso mode de falar. Quem manda é o uso geral e não a gramática. Se todos nós começarmos a usar o tu e o você misturados, a gramática só tem uma coisa a fazer...
- Eu sei o que ela tem a fazer, vovó! - gritou Pedrinho. É pôr o rabo entre as pernas e murchar as orelhas.... 
Dona Benta aprovou. 
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Nicéas Romeo Zanchett 

A ASSEMBLÉIA DOS RATOS - De Monteiro Lobato

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               Um gato de nome Faro-Fino deu de fazer destroço na rataria duma casa velha que os sobreviventes, sem ânimo de sair das tocas, estavam a ponto de morrer de fome. 
               Tornando-se muito sério o caso, resolveram reunir-se em assembléia para o estudo da questão. Aguardaram para isso certa noite em que Far-Fino andava aos miados pelo telhado, fazendo sonetos à lua. 
                - Acho - disse um deles - que o Meio de nos defendermos de Faro-Fino é lhe atarmos um guizo ao pescoço. Assim que ele se aproxima, o guizo o denuncia,e pomo-nos ao fresco a tempo. 
                 Palmas e bravos saudaram a luminosa ideia. O projeto foi aprovado com delírio. Só votou contra um rato casmurro,que pediu a palavra e disse: 
                 - Está tudo muito direito. Mas quem vai amarrar o guizo no pescoço de Faro-Fino? 
                Silêncio geral. Um desculpou-se por não saber dar nó. Outro, porque não era tolo. Todos, porque não tinham coragem, E a assembléia dissolveu-se no meio de geral consternação. 
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Dizer é fácil; fazer é que são elas!



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- Que história essa de gato fazendo sonetos à Lua? - interpelou a menina. A senhora está ficando muito "literária" vovó...
 Dona Benta riu-se.
- Sim, minha filha. Apesar do meu desamor pela "literatura", às vezes faço alguma. Isso aí é uma "imagem literária". A Lua é um astro poético, e quando um gatinho anda miando pelo telhado, um poeta dizer que ele está fazendo sonetos à Lua. É uma bobagenzinha poética.
- "Desamor pela literatura", vovó? - estranhou Pedrinho. Então a senhora desama a literatura? 
Dona Benta suspirou. 
- Meu filho, há duas espécies de literatura, uma entre aspas e outra sem aspas. Eu gosto desta e detesto aquela. A literatura sem aspas é a dos Grande livros; e a com aspas é a dos livros que não valem nada. Se eu digo: "Estava uma linda manhã de céu azul", estou fazendo literatura sem aspas, da boa. Mas se eu digo: "Estava uma gloriosa manhã de céu americanamente azul", eu faço "literatura" da aspada - da que merece pau. 
- Compreendo, vovó - disse a menina - e sei dum exemplo ainda melhor. No dia dos anos da Candoca o jornal da vila trouxe uma notícia assim: "Colhe hoje mais uma violeta no jardim da sua preciosa existência a gentil Senhorita Candoca de Moura, ebúrneo arnamento da sociedade itaoquense: Isto me parece literatura com dez aspas. 
E é, minha filha. É da que pede pau...
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Nicéas Romeo Zanchett 


terça-feira, 18 de dezembro de 2018

O TOURO E AS RÃS - de Monteiro Lobato

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               Enquanto dois touros furiosamente lutavam pela posse exclusiva de certa campina, as rãs novas, à beira do brejo, divertiam-se com a cena. 
               Uma rã velha, porém, suspirou. 
               Não se riam, que o fim da disputa vai ser doloroso para nós. 
               - Que tolice! - exclamaram as rãzinhas. Você está caducando, rã velha! 
               A rã velha explicou-se: 
               - Brigam os touros. Um deles há de vencer e expulsar da pastagem o vencido. Que acontece? O animalão surrado vem meter-se aqui em nosso brejo e ai de nós!... 
               Assim foi. O touro mais forte, à força de marradas, encurralou no brejo o mais fraco, e as rãzinhas tiveram de dizer adeus ao sossego. Inquieta sempre, sempre atropeladas, raro era o dia em que não morria alguma sob os pés do bicharoco. 
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É sempre assim: brigam os grandes, pagam o pato os pequenos. 


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Estou achando isto muito certo - disse Narizinho. Os fortes sempre se arrimam lá entre si - e os fracos pagam o pato.
- É a lei da vida, minha filha. A função do fraco é pagar o pato. Nas guerras, por exemplo, brigam os grandes estadistas - mas quem vai morrer nas batalhas são os pobres soldados que nada têm com a coisa. 
- Pagar o pato! Donde viria essa expressão? 
- Eu sei - berrou Emília. Veio duma fabulazinha que vou escrever. "Dois fortes e um fraco foram a um restaurante comer um pato assado. Os dois fortes comeram todo o pato e deram a conta para o fraco pagar...
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Fonte: Fábulas de Monteiro Lobato. Coleção Educar.

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Nicéas Romeo Zanchett 

OS CARNEIROS JURADOS - de Monteiro Lobato

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              Certo pastor, revoltado com as depredações do lobo, reuniu a carneirada e disse:
              - Amigos! É chegado o momento de reagir. Sois uma legião e o lobo é um só. Se vos reunirdes e resistirdes de pé firme, quem perderá a partida será ele, e nós nos veremos para sempre libertos da sua cruel voracidade. 
              Os carneiros aplaudiram-no com entusiasmo e, erguendo a pata dianteira, juraram resistir. 
               - Muito bem! - exclamou o pastor. Resta agora combinarmos o meio prático de resistir. Proponho o seguinte: quando a fera aparecer, ninguém foge; ao contrário; firmam-se todos nos pés, retesam os músculos, armam a cabeça, investem contra ela, encurralam-na, imprensando-na ; esmagam-na! 
               Uma salva de bés selou o pacto e o dia inteiro não se falou senão na tremenda réplica que dariam ao lobo. 
              Ao anoitecer, porém, quando a carneirada se recolhia ao curral, um berro ecoou de súbito: 
              - O lobo!...
              Não foi preciso mais: sobreveio o pânico e os heróis jurados fugiram pelos campos a fora, tontos de pavor. 
              Fora rebate falso. Não era lobo; era apenas a sombra de um lobo!...


Ao carneiro só peças lã. 



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- Por que só pedir lã aos carneiros? - disse Emília. Podemos também pedir-lhes costelas. Dos carneiros é só o que interessa tia Nastácia, as costelas...
Dona Benta explicou que o principal do carneiro não era a carne e sim a lã. 
- Carne todos os animais têm - disse ela - e lã, só o carneiro. Lã em quantidade, que dá para vestir todos os homens da terra, só o carneiro. É por isso que o autor desta história fala em lã e não em carne. A moralidade da fábula é que não devemos exigir das criaturas coisas que elas não podem dar. Se pedimos lã a um carneiro, ele no-la dá muita e excelente. Mas se pedirmos coragem, ah, isso ele não dá nem um pingo. 
- Por que? 
- Porque não tem. Não há bichinho mais tímido, mais sem coragem que o carneiro. Quando queremos falar duma pessoa muito pacífica, dizemos, "E um carneiro!"

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Fonte : Fábulas de Monteiro Lobato - coleção Educar. 

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Nicéas Romeo Zanchett 

O BURRO JUIZ - de Monteiro Lobato

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               A gralha começou a disputar com o sabiá afirmando que sua voz valia mais que a dele. Como as outras aves se rissem daquela pretensão, a barulhenta matraca de penas gralhou furiosa: 
               - Nada de brincadeiras! Isto é uma questão muito séria, que deve ser decidida por um juiz. O sabiá canta, eu canto, e uma sentença decidirá quem é o melhor cantor. Topam? 
               - Topamos! - piaram as aves. Mas quem servirá de juiz? 
               Estavam a debater este ponto quando zurrou ao longe um burro. 
               - Nem de encomenda! - exclamou a gralha. Está lá um juiz de primeiríssima ordem para julgamento da música, porque nenhum animal possui orelhas daquele tamanho. Convidemo-lo para julgar a causa. 
               O burro aceitou o juizado e veio postar-se no centro da roda. 
               - Vamos lá, comecem! - ordenou ele. 
               O sabiá deu um pulinho, abriu o bico e cantou. Cantou como só cantam os sabiás, repicando os trinos mais melodiosos e límpidos. 
               - Agora eu! - disse a gralha, dando um passo à frente. E abrindo a bicanca matraqueou um berreiro de romper os tímpanos aos próprios surdos. 
              Terminada a prova, o juiz abanou as orelhas e deu a sentença: 
              - Dou ganho de causa a Dona Gralha, que canta muito melhor que mestre sabiá. 

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Quem burro nasce, togando ou não, burro morre. 


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- Estou compreendendo - disse Narizinho. A gralha escolheu para juiz o burro justamente  porque um burro não entende nada de música - apesar das orelhas que tem. Essa gralha era espertíssima ...
- Pois se escolhesse o nosso buro Falante - disse Emília - quem levava na cabeça era ela. Impossível  que o Conselheiro não desse sentença a favor do sabiá! Já notei isso. Sempre que um passarinho canta num galho, ele espicha as orelhas e fica a ouvir, com um sorriso nos lábios...
Dona Benta riu-se e deixou passar a fábula sem nenhum comentário. 
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Fonte: As Fábulas de Monteiro Lobato - Coleção Educar. 
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Nicéas Romeo Zanchett 

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

O JULGAMENTO DA OVELHA - de Monteiro Lobato

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             Um cachorro de maus bofes acusou uma pobre ovelhinha de lhe haver furtado um osso. 
              - Para que furtaria eu esse osso - alegou ela - se sou herbívora e um osso para mim vale tanto quanto um pedaço de pau? 
             - Não quero saber de nada. Você furtou o osso e vou já levá-la aos tribunais. 
             E assim fez. 
              Queixou-se ao gavião penacho e pediu-lhe justiça. O gavião reuniu o tribunal para julgar a causa, sorteando para isso doze urubus de papo vazio. 
              Comparece a ovelha. Fala. Defende-se de forma cabal, com razões muito irmãs das do cordeirinho que o lobo em tempos comeu.
              Mas o juri, composto de carnívoros gulosos, não quios saber de nada e deu a sentença: 
              - Ou entrega o osso já e já, ou condenamos você à morte!
              A ré tremeu: não havia escapatória!...  Ossa não tinha e não podia, portanto, restituir; mas tinha a vida e ia entregá-la em pagamento do que não furtara. 
              Assim aconteceu. O cachorro sangrou-a, espostejou-a, reservou para si um quarto e dividiu o restante com os juízes famintos, a título de custas... 

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Fiar-se na justiça dos poderosos que tolice!... A justiça deles não vacila em tomar  do branco e solenemente decretar que é preto. 


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- Esta fábula - disse Dona benta - é muito dolorosa. É um verdadeiro retrato da justiça humana; e se fosse explicar a lição que existe aqui, levaria um ano. Não vale a pena. Vocês vão viver, vão crescer, vão conhecer os homens - e irão percebendo a profunda e triste verdade desta fabulazinha...
- Que quer dizer "maus bofes", vovó? 
- Quer dizer de má índole, de maus sentimentos, e foi por ser assim que o cachorro acusou a pobre ovelha. 
- E os urubus juízes também, eram de mais bofes? 
- Não. esses eram apenas maus juízes, dos que julgam de acordo com certos interesses, em vez de julgar de acordo com a justiça. 
- Que interesse tinham eles no caso? 
- Estavam com fome e queriam comer a ovelha. 
Emília protestou.  - Acho que nesse ponto a fábula não tinha "propriedade gastronômica".
- Por que? 
- Porque urubu não come carne fresca, só come carne podre... 
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Fonte: Fábulas de Monteiro Lobato - Coleção Educar. 
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Nicéas Romeo Zanchett 

BURRICE - de Monteiro Lobato

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             Caminhavam dois burros, um com carga de açucar, outro com carga de esponjas. 
             Dizia o primeiro: 
             - Caminhemos com cuidado, porque a estrada é perigosa. 
             O outro redarguiu: 
              - Onde está o perigo? basta andarmos pelo rastro dos que hoje passaram por aqui. 
              - Nem sempre é assim. Onde passa um pode não passar outro. 
              - Que burrice! Eu sei viver, gabo-me disso, e minha ciência toda se resume em só imitar o que os outros fazem. 
              - Nem sempre é assim, nem sempre é assim... continuou a filosofar o primeiro. 
              Nisto alcançaram o rio, cuja ponte caíra na véspera. 
              - E agora? 
              - Agora é só passar a vau.
              O Burro do açucar meteu-se na correnteza e, como a carga se ia dissolvendo ao contato da água, conseguiu sem dificuldade pôr pé na margem oposta. 
              O burro da esponja, fiel às suas ideias, pensou consigo: 
              - Se ele passou, passarei também - e lançou-se no rio. 
              Mas a sua carga, em vez de esvair-se como a do primeiro, cresceu de peso a tal ponto que o pobre tolo foi ao fundo. 
              - Bem dizia eu! Não basta querer imitar, é preciso poder imitar - comentou o outro. 
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- Que é passar a vau? - perguntou Pedrinho. 
- É uma expressão antiga e muito boa. Quer dizer "vadear um rio", passar por dentro da água no lugar mais raso. 
- E porque a senhora disse "redarguiu"? Não é pedantismo? - quis saber a menina. 
- É e não é - respondeu Dona Benta. Redarguir é dar uma resposta que é também pergunta. Bonito não?
- Por que é e não é? Como uma coisa pode ao mesmo tempo ser e não ser? 
- É pedantismo para os que gostam da linguagem mais simplificada possível. E não é pedantismo para os que gostam de falar com grande propriedade de expressão. 
- E que é propriedade de expressão? quis saber Narizinho. 
- Propriedade de expressão - explicou Dona benta - é a mais bela qualidade dum estilo. É dizer as coisas com a maior exatidão. Ainda há pouco Emília falou no "ferrinho do trinco da porta." temos aqui uma "impropriedade de expressão." Se ela dissesse "lingueta do trinco" estaria falando com mais propriedade. 
- Mas é ou não é ferrinho? - redarguiu Emília. 
A lingueta do trinco é um ferrinho, mas um ferrinho não é lingueta - pode ser mil coisas. 
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Fonte: Fábulas de Monteiro Lobato - Coleção Educar.
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Nicéas Romeo Zanchett